Maratonista II

um céu cheio de nuvens escuras de chuva

Está chovendo na clareira e me sinto sozinho. Eu sei que não estou sozinho, mas a torrente de água caindo constantemente não me deixa ver um palmo além do corpo e uma imensidão de nada. Meu corpo treme, a mochila ensopada. Observo todo o trabalho molhado, todo o tempo perdido (perdido, perdido, perdido) eu não sei para onde ir ou o que fazer agora.

Desisto de segurar as lágrimas. Não sei mensurar o quanto choro, lágrimas se misturando à chuva e caindo e caindo e caindo e meu peito não se mexe direito e não consigo respirar. Fecho os olhos, cansado. Quero dormir, mas não posso. Preciso proteger a mochila, preciso cuidar da mochila, encher a mochila, esvaziar a mochila. Seguir em frente, sempre em frente, sempre em frente.

A pele coça, tem sangue embaixo das minhas unhas. Eu tenho medo, muito medo. Dentro de mim tem cinquenta e oito coisas acontecendo ao mesmo tempo, respira fundo, um pé na frente do outro, abrigo, abrigo, abrigo, mas se não achar, siga em frente, cuida da mochila, custe o que custar.

Se a sua cabeça for necessária, siga em frente.

Se perguntarem, faça o favor de dizer que está tudo bem. Diga com um sorriso. Não deixa parecer falso, tem que ser honesto. Acredite nisso! Usa uma blusa longa pra não dar pra ver essas ataduras, esconde os band-aids, toma essa maquiagem. Mas passa enquanto anda, tome tento! Não há tempo, continue.

Desviei da clareira hoje. Continuei pela mata densa, deixando o choro vir com medo e tudo, andando em círculos por estar perdido. Grito assustado quando um amigo me segura pelos ombros e me aponta pra frente. Choro ainda mais quando ele pega minha mochila e carrega junto da sua, o olhar cansado me destruindo por dentro.

Não é a primeira vez que eu penso em desistir.

Eu posso só largar tudo aqui, certo? Botar fogo na mochila e seguir em direção à estrada. Andar devagar, mas sempre em linha reta, sempre naquele asfalto cinza. Ao menos seria para frente? No fundo eu sei que não existe o desistir. Que tentar não ser eu seria pedir para ser assombrado por fantasmas, colocar uma sentença em mim mesmo. Eu sei disso, mas ainda cogito desistir.

No fim, seguimos. Me carregam por um dia enquanto sou dominado por vergonha, medo, cansaço, tristeza. Sigo. Cuidam de mim na clareira, as feridas se fecham. Paro de chorar só para começar de novo e de novo e de novo. Tenham piedade da minha alma, por favor. Não mereço os amigos que tenho, é tudo que consigo pensar. Vejo a mochila de longe, sempre nos ombros de alguém diferente. O agradecimento entala na garganta e não sai. Não estou pronto. Não estou. Não estou. Algum dia vou estar pronto?

Quando volto a sentir meus braços peço a bagagem de volta. Ainda não sei o que fazer com ela, ou para onde ir, mas a seguro com todas as minhas forças. Me perco no caminho, seguram a minha mão. Nos amarram cordas, por favor não se afaste. Veja, precisamos de você.

Precisam mesmo?

(para de mentir. para de se sabotar. para. para. para. para. para de deixar esse demônio gritar. compra uma mordaça melhor, amarra esse filho da puta. respira fundo)

Parece que um tempo infinito se passou quando consigo recobrar o senso do caminho. Quando o que é frente e o que é trás volta a fazer sentido e quando pra frente significa de novo algo além de só passos e pés e sons e confusão. As lágrimas secaram nesse ponto, mas eu sei que voltarão. Com a certeza de que amanhã é um novo dia, confio que chorarei um pouco mais. Não é o fim.

Talvez isso seja algo bom. Talvez isso seja algo horrível.

Eu só espero conseguir aproveitar a próxima clareira.

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