Ouvidos inférteis e garras no lugar do coração

Um palco escuro, somente um ponto é iluminado. Nesse ponto tem uma pessoa deitada meio de lado, com as mãos na cabeça.

Eu provavelmente estava mais ou menos distraído e mais ou menos focado naquele dia, naquela sessão em particular. Foco é um problema pra mim, as coisas se misturam muito rápido. Mas eu lembro bem de ter parado tudo ao ouvir essas oito palavras:

“Ouvidos inférteis e garras no lugar do coração”.

O contexto era outro e fazia todo sentido (o Lucas é realmente uma mente brilhante). Esse me parece um jeito perfeito de descrever draconatos fascistas de merda que acreditam numa supremacia estúpida. Devo ter digitado a frase inteira cinco ou seis vezes em capslock em dois ou três chats diferentes absolutamente pasmo e arrebatado — eu sou fraco por analogias, fico sentido demais.

Anotei no meu caderno, as palavras não saiam da minha cabeça. A essa altura eu me perguntava porque diabos eu não conseguia parar de pensar nisso. Lavando vasilhas, trabalhando, olhando despretensiosamente pro teto enquanto fugia de alguma obrigação por alguns minutos. A maldita frase sempre dava um jeito de se esgueirar de volta pros meus pensamentos, ligeira e precisa. Eu não entendia o aperto no estômago, não entendia por que eu não conseguia seguir em frente.

O sentido demorou a vir. De certo ponto de vista, acredito que isso seja um bom sinal pra mim. Ou não. Quem sabe. Demorou porque minha mente inconstante às vezes tira folga e me dá uns segundos para respirar. Eventualmente passa.

.

Começou como um formigamento na ponta dos dedos. As mãos fechando e abrindo, as palmas se esfregando. Estalo todos as articulações que consigo me lembrar. Nós dos dedos. Punho. Braços. Calcanhares. Fecho os olhos, respiro fundo. Agora não.

Agora sim.

O formigamento sobe pelos cotovelos e se aloja no peito. Ou no estômago. Depende do dia ou da intensidade. É quase como uma coceira, mas interna e mental. Os membros pensam toneladas, o ar fica como se rarefeito. O cansaço é inteiramente emocional. Agora não.

Agora sim.

Movo minha cabeça no ritmo da minha respiração. Cada vez mais rápido, pisco como se fizesse diferença. A luz está forte demais. O escuro é frio demais. As mãos correm pelos braços, pescoço, peito. Não param, tremem de leve. Tampo os olhos e tento gritar pedindo silêncio. Nenhum som é ouvido. Por favor, por favor. Agora não.

Agora sim.

As lágrimas são impiedosas e cruéis. O ar não passa, a garganta fecha, a tosse é alta. Se afogando fora d’água. Seguro as cobertas, meu interior em chamas. O universo tranquilo e meu corpo em uma realidade paralela, transposta, sofrida. Balanço a cabeça, tento afastar o som, o maldito som, as palavras que não param, a voz que não cala, o capeta que mostra os dentes e rosna tão perto de mim, a baba me escorrendo pelo rosto. O grito que finalmente sai é desfigurado e gutural. Agora não. Agora não. Agora não.

Agora sim.

Eu li uma vez que uma crise quase nunca passa dos vinte minutos. Os vinte minutos mais longos da minha vida. Só que eles acontecem de novo. E de novo. E de novo. Espaçados o suficiente pra eu quase pensar que finalmente me esqueci de como é ter o corpo imobilizado pelo desespero e tendo o pânico como único norte. Quase. No fim, as unhas sobem pelas minhas pernas e se fixam no meu peito e estou balançando meu corpo pra frente. Pra trás. Pra frente. Pra trás. Pra frente. Pra trás. E nada existe além desse único movimento de disco arranhado.

Os gritos nem sempre fazem sentido. E quando fazem geralmente são mentiras. Baseados meio que em fonte: arial 12, ou: juro por deus. Mas nada disso faz diferença na hora H. A ansiedade mente com uma lábia de dar inveja, e é fácil ser levado por descrições negativas razoáveis. Não necessariamente verdadeiras, apenas razoáveis.

“Você não vale nada”. Cala a boca.

“Nada vai dar certo”. Se foder.

“Aperta aí no teclado: Control + A + Backspace. Apaga tudo. Tá tudo um lixo.” Lágrimas salgadas.

“Inútil. Inútil. Inútil.” Eu não aguento mais.

“Na verdade, você devia ter vergonha de já ter soltado coisas por aí. Não passam de merd…”. Putamerda, por favor, para.

“Todo mundo te acha um merda”. Isso não faz nem sentido.

“Não precisa fazer. Você sabe que é verdade”. Eu sei. Por favor, para.

Os dentes afiados roçam a minha pele, eu estou no limite. Fora de órbita, desesperado. Ar, eu preciso de mais ar. Todo o ar do mundo não é suficiente.

“Por que você continua tentando?”. É a única maneira.

“Você nunca vai vencer”. Eu só posso descobrir se não desistir.

“Ninguém se importa com você”. ISSO NÃO É VERDADE.

Não é. Não é. Não é. Não pode ser… Não pode. Não pode ser. A cabeça continua balançando. Não é. Não é. Não é. Não pode ser.

Quanto tempo já foi? Eu não sei mais contar. Estou exausto e a voz não cala a porra da boca. Nessas horas eu sinto que

nada de bom floresce em mim.

Solo árido demais, tudo meio morto. É uma ilusão de primeira. Mascara bem o que eu sei que existe, mas a ansiedade não me deixa enxergar.

“Por que você não deleta tudo que já fez?”. Porque seria idiota.

“É a única coisa correta a se fazer”. Eu não aguento mais viver com medo.

“Você devia só calar a boca”. POR QUE VOCÊ NÃO CALA A BOCA?

Como você convence a si mesmo de uma mentira que você mesmo conta?

As garras continuam seu caminho decidido, prendendo meu corpo, ferindo o meu interior. Me destruindo de dentro pra fora. Me remendando só pra me desfazer de novo.

Cansado.

Exausto.

Dolorido.

O capeta venceu essa. O demônio sou eu mesmo. Unhas prontas, dentes afiados, grita tão alto que se recusa a ouvir.

.

Foi só quando passou que o sentido chegou. Como quem não quer nada, sentado na sala de casa e me olhando de quina. Parecia dizer: entende agora?

A compreensão veio em forma de lágrimas.

Adubar o solo. Lixas as unhas.

Seguir em frente.

Começar tudo de novo.

(“Ouvidos inférteis e garras no lugar do coração” é uma expressão no idioma esfíngico. A expressão e o idioma foram cunhados por Lucas Durão, da Maré Geek. Aparecem na campanha de RPG do “Círculo do vento”, disponível no canal.)

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