Sobre ligações e a escuridão

um telefone com fio em cima de um fundo branco

O celular não toca. Meu celular nunca toca. Mas a tela se acende e eu vejo seu rosto e um apelido que usei pra salvar seu contato que era um trocadilho com uma mãe de uma franquia famosa (envelheceu mal, talvez eu já devesse ter mudado). Eu olho um segundo pra imagem tremendo, o fundo verde indicando a ligação feita pelo aplicativo. A gente só se fala por aplicativo desde que vocês mudaram o plano de telefone lá de casa. Da casa de vocês.

Respiro fundo. O que eu sinto nesses momentos nunca é igual: pode ser angústia, ansiedade, felicidade, alegria! Depende de tantos fatores que não vale a pena listá-los. Dessa vez estou com saudades. Já tem um tempo desde a última ligação. Eu não notei ainda, mas quase sempre termina em merda as ligações que se iniciam com saudade. Agora eu sei. Agora dói.

Eu atendo sempre escolhendo uma piada diferente, a gente é bobo sempre.

— Oi! A senhora ligou pra doar mil reais?

A gente brinca um pouco, “foi engano!”. Mas não desliga.

O assunto depende também. Geralmente é nada em específico, “só pra matar saudade”.

Como você tá?

A resposta também depende. Honestidade quase nunca entra na conta. Quase.

— Ah, o de sempre mãe. Tô cansad-— tosse — do trabalho, cansada da faculdade. Correria o tempo todo. Mas tudo bem, tudo bem.

Comida pode entrar na equação:

— Tô fazendo aquele frango empanado de novo… Putamerda mãe, sensacional.

E eu pergunto como ela tá e quero saber, genuinamente. Ela me fala da casa, dos meninos, do meu pai.

— E o sítio? Tá alugando?

Amenidades. Me sinto um amigo distante que pergunta sempre as mesmas amenidades, toda vez. Exausto. No meio da conversa geralmente um dos meninos grita no telefone, de brincadeira. A gente é mesmo bobo.

— Ai, N******, não quer pra você não?

Suspiro. Mesmo sabendo sempre como isso vai terminar, eu quase nunca tô preparado. Nessas horas outras coisas vêm na minha cabeça, e eu já disse que tô cansado? É exaustivo ter uma vida dupla. A Hanna Montana, só que o pior dos dois mundos.

— Mãe, te falar, tô precisando desligar. Depois te ligo, tá? — Suspiro. — Sim, juízo você também.

Tudo vem no automático. Eu deito, olhando pro teto. Cansado. Uma ligação que pareceu uma maratona. Eu odeio ligações. Encaro a tinta amarela pensando no fim que aguarda essa relação. Em como tudo indica que ele é inevitável. O corpo parece pesar uma tonelada contra a cama, a cabeça girando.

Internamente estou em outro lugar. Desejando que tudo fosse diferente, que eu não precisasse mentir. Que quem eu sou não fosse motivo de mentira.

(Uma pequena parte de mim deseja ser diferente para não ter que mentir. Eu amarro a boca dela para que não consiga gritar).

As perguntas disparam, mil ao mesmo tempo, como balas carteiras. Por que eu sou assim? Por que eles não me respeitam? Por quê? Por que tinha que ser eu? Por que eu não posso ser só norm…

Não.

Focinheira no demônio que grita, alguém amarra esse filho da puta porque eu to exausto. Não deixa ele fugir de novo, por favor?

Tá tão frio. Pode apagar a luz? — É que eu sinto que eles falam mais baixo no escuro.

Atrás dos meus olhos é tudo preto e dentro de mim uma geleira.

Eu lembro daquela vez que minha mãe achou meu binder e eu pensei que iria morrer. Não morri. Isso não significa absolutamente nada. Cansado.

Eu tento pensar na última vez que ouvi meus irmãos me chamarem pelo nome. O meu nome. Não sei quando foi. Não há memórias. Digitado conta? É que as sílabas são sonoras…

O outro nome é repleto de facas afiadas me fazendo sangrar pouco a pouco. Farsa. Se eu dependesse disso pra viver eu tava morto, sou um ator de merda. Mas tô vivo. Quem acredita nessa figura que volta para casa e come pronomes no almoço?

Eu to cansad.

Que é pra fugir de usar uma mentira ou, pior, de errar. Eu erro tanto. Ninguém acredita nessa, só estão fingindo comigo.

Eu tenho medo de como vai ser no fim porque não tem luz no fim do túnel, só trevas. Elas se enroscam nos meus pés e querem que eu caia e o chão é um lugar confortável pra se estar quando o fundo do poço é amigo íntimo. Cansaço. A maratona parece nunca ter fim e eu corro e corro e o fim não fica mais perto, a névoa só fica mais densa, é difícil respirar.

Ergo a cabeça, o corpo como se tivesse sido atropelado.

Preciso de um banho.

Disso, e de aceitar que é por isso que eu quase não ligo pra casa.

Eu sou meu único lar.

Photo by Alexander Andrews on Unsplash

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