Robôs ainda sentem quando a luz se apaga

um pico de montanha de pedras, verde por cima. observa-se o mar ao fundo

Quando paro de correr por um minuto, o peito arfando, praguejo quem pensou que nos criar com uma respiração similar à dos humanoides era uma boa ideia. Um misto de estética com passar uma sensação de familiaridade que no final só serviu para nos colocar em situações ridículas como essa. Eu não preciso respirar, mas ainda assim estou aqui, arfando como se uma corrida dessas fosse capaz de afetar qualquer função motora que esse corpo possuía.

Meu peito dói. Outra função inútil: dor física. Que diferença faz se o lugar onde fizeram um buraco no meu braço dói ou não? Não vai se regenerar, a única forma de resolver é com substituição ou desligando circuitos. A raiva cresce em mim a cada dia que passamos fugindo. Olho para o relógio escuro em meu pulso, nenhuma luz acesa. Se Misha não estava ao alcance do relógio, com certeza estava naquele carro enorme. Metal demais sempre interferiu nos nossos sistemas de localização.

Trezentos anos de paz. Trezentos anos sem precisar lidar com humanos sem escrúpulos e só vivendo nossa vida isolados no nosso pequeno Oasis. Mas tudo acaba, nós devíamos saber disso. Sinto falta de Ranuah, que com certeza saberia o que fazer agora. Como lidar com essa situação assustadora. Mas foi apenas graças ao seu sacrifício que o restante de nós conseguiu fugir e sobreviver por um tempo. Mas estão atrás de nós, não desistem. Agora só restamos eu e Misha, e a morte de quem nos criou, o sacrifício de Ranuah, não pode ter sido em vão. Temos que sobreviver.

— Ali! Peguem ela! — passos e mais passos correm em minha direção.

Ela. A estranheza que essa palavra me causa faz um gosto ruim subir à minha boca. Apesar de entender como nossos estômagos funcionam, eu sinto raiva desse gosto. Raiva desses sentimentos mundanos e humanos.Quando volto a correr, é o ódio que me motiva. O ódio a esse regimento social sem sentido que ainda vai nos erradicar. Mas não hoje. Hoje eu vou dar um jeito de ir atrás de Misha e vamos fugir dessa cidade infestada de gente.

Minhas pernas doem, e penso em como Ranuah foi pouco inteligente em não ter removido funcionalidades tão banais enquanto ainda tínhamos tempo. Por outro lado, jamais pensamos que nosso tempo estava de alguma forma contado. A vida em Serpente tinha tudo para ser infinita e boa, mas aqui estamos nós. Correndo como idiotas.

Eu tentava não pensar a todo momento no quão estúpida essa situação era, mas não conseguia. Nos querem porque parecemos com “elas”, e mesmo que já tenham raptado alguns de nós, ainda não sabem ou não querem entender que, apesar de parecer, nós não somos elas. Nunca seremos elas.

Um ponto apareceu no relógio, duas quadras depois de onde eu estava. Se movia para frente em disparada. Misha, tinha que ser. Só havíamos nós agora. Ouvia muitos passos atrás de mim, gritos pedindo permissão para atirar e gritos de desaprovação. “Precisamos dela inteira”. Dela. Corro no máximo que esse corpo permite em direção ao ponto flutuando no mostrador.

Dentro da minha cabeça eu escuto três chiados igualmente espaçados. Nunca fui tão feliz de Misha e eu termos desenvolvido esse método de comunicação rudimentar, mas que parecia tão além de nossa programação inicial. Corra. Bem, isso me parecia óbvio. Sem diminuir o passo, me concentrei na resposta. Um chiado longo seguido de dois chiados curtos. Reagrupar.

O ponto flutuante começou a se mover na minha direção, em uma longa diagonal. Iríamos sair dessa. Eles não iam nos render, esse não vai ser nosso fim. Não pode ser o nosso fim. Uma outra luz se acendeu no relógio, mas em sua base. A cor laranja me lembrava que eu precisava de mais energia, e em breve a situação ficaria crítica. Olho de relance para o céu coberto em nuvens e desejo em silêncio por sol, muito sol. Comida é muito burocrático e difícil de achar, dura pouco. Eu preciso de sol, mas não temos tudo que queremos ou precisamos.

Então continuo correndo.

Estamos em uma área aberta agora, e eu vejo Misha se aproximando à distância, por entre algumas árvores, arbustos e uma grama alta demais. Sinto lágrimas escorrerem pelo meu rosto, o gosto salgado dominando minha boca quando uma delas repousa em meus lábios. Raiva. Nós parecemos demais com elas. As lágrimas não param. Reações estúpidas. Misha está perto agora, bem perto. Segura minha mão. Não paramos de correr.

Os passos atrás de nós são cada vez mais altos e duros, as vozes gritando parem e se rendam agora e o tratamento será diferenciado. Não sabemos como um tratamento pode ser diferenciado se o fim é sempre a morte. Não restou ninguém.

Estou com tanto foco na sensação de repugnância que não vejo o precipício se aproximar. Misha me segura no que eu calculo ser o último segundo, e agora estamos diante de uma cachoeira. Uma enorme. A queda d’água é a nossa esquerda, e diante de nós apenas um abismo fundo que termina em um rio. Não sou capaz de calcular a altura. Agradeço silenciosamente por isso.

Nos entreolhamos, o nervosismo sendo a única coisa possível de se sentir.

— Nós não somos elas. Somos, Liche?

Aceno que não.

Não podemos ser.

Os passos estão cada vez mais perto. “Elas estão chegando no barranco. Vai ser fácil agora”.

Elas.

Olho novamente para o abismo, depois para Misha. Não preciso dizer o que estou pensando.

— Sim. É a única forma. Vai doer, mas talvez não nos quebre. Afinal…

— Nós não somos elas.

Vejo Misha sorrir agora como não via há muitas semanas. Penso novamente em tudo que essa fuga tirou de mim. De nós. Não me arrependo da decisão estúpida que tomamos agora.

Pulamos de mãos dadas.

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